A Caneta
Enquanto aquela desconhecida entrava em uma vida sem a caneta, eu entrava em um dilema moral.
Eu estava parado quando aconteceu. Rimava a música que tinha criado para não esquecer o número do ônibus que eu tinha que pegar. Não erre uma vez, não erre duas, erre dez. Não erre três vezes, nem quatro, erre dez. Não erre cinco, nem seis vezes, erre dez. Não erre sete, nem oito, erre dez. Muito menos erre nove, erre dez. Com a bateria do meu celular cada vez mais perto de zero, cantarolava olhando para a movimentação na rua. Logo, posso dizer com clareza que eu vi quando a caneta caiu do bolso daquela mulher.
Ela descia do ônibus com pressa, devia estar atrasada para uma aula, talvez tenha saído tarde de casa porque estava fazendo os últimos preparos para o carnaval, ou apenas tinha um compromisso que não podia perder. Naturalmente, ela percebeu que algo poderia ter caído dos seus bolsos. Segurava a sua bolsa para que nada caísse enquanto procurava o que poderia ter caído, mas seus olhos não encontraram a caneta no chão. Pela pressa, ou pelo simples desprendimento com as coisas materiais, ela seguiu seu rumo em passos apressados.
Enquanto aquela desconhecida entrava em uma vida sem a caneta, eu entrava em um dilema moral. Deveria, enquanto era tempo, avisá-la da perda? Ou apenas aceitar um papel de mero observador? Caso decidisse correr até ela com a caneta em mão, ela provavelmente me agradeceria, ambos iríamos sorrir e a vida seguiria. Para mim, para ela e para a caneta — que não ficaria longe do conforto da mochila. A minha decisão, entretanto, foi observar. Caiu sobre mim a responsabilidade de saber se aquela caneta, agora fria no chão, encontraria um novo lar.
Poucas pessoas, entretanto, notaram a presença daquela Bic azul no meio da calçada. Eu a encarava, ainda anestesiado por tudo que acabara de acontecer, quando levei um susto ao ver ela ser chutada. Com o impacto ela rodopiou para alguns metros dali. O que me doeu foi menos o chute que o tênis da pessoa não sentir que estava mudando a trajetória daquela caneta. Os próximos pontapés vieram logo depois. Indo cada vez mais para a beirada que para o centro da calçada. Ninguém parecia notar ela ali, exceto eu. Até que vi uma pessoa considerar. Parou em sua frente. Olhou para ela. Talvez já tivesse uma caneta como aquela, ou quem sabe até não era muito fã de canetas, era do tipo que prefere lapiseiras e guardava sempre um potinho recheado de grafite 0.6. A consideração durou menos de cinco segundo e ela passou reto. Quem eu tive certeza que estava bem servido de canetas era um senhor de idade, que andava orgulhoso exibindo sua própria caneta Bic preta no bolso do camiseta. Parecia tão nova que cogitei se ele teria uma outra caneta apenas para uso, enquanto essa ficava guardada, imaculada. O negócio ficou feio quando vi uma pessoa olhar e desviar, como se fosse lixo ou cocô de cachorro não recolhido pelo dono. O tempo passava e eu via a esperança indo embora — sem pegar a caneta.
Comecei a pensar se devia, sim, ter ido atrás daquela mulher e lhe entregado a caneta, como um bem feitor da vizinhança. Talvez ela estivesse indo para um lugar onde a caneta era mais que necessária e, ao chegar lá, percebendo que estava desarmada, de nada adiantara ter ido. Os papeis não poderiam mais ser assinados, ou zerou uma prova, ou foi ver uma sobrinha que queria muito fazer uma tatuagem de mentirinha, mas ela estava sem caneta para pintar algumas flores no braço daquela menina. Ora, como as pessoas têm coragem de dizer que, ao olhar para o universo, somos insignificantes sendo que a falta de uma canela esferográfica pode mudar drasticamente a nossa tragetória. O fato é que não sei o que se deu dela, nem da caneta. Esse é o papel do observador: ele assiste, sem interferir na história. Sem dar nenhum tipo de assistência. Chegou o 719R-10.